REFLEXÕES... Mídias independentes francesas e brasileiras: realidades contrastantes

Cartum de Vinoli

Por Marialina Antolini

Mídia radical, imprensa alternativa, veículos comunitários de comunicação. Muitos nomes, diferentes plataformas e maneiras de fazer as informações circularem, um desejo comum: ser uma voz independente que conta histórias e narra fatos a partir de uma perspectiva própria. A importância e o papel estratégico das mídias independentes em diversas frentes estão documentados por diferentes pesquisadores e histórias pelo mundo afora.

No Brasil, essa realidade não é diferente: muito além do conhecido papel na busca por liberdade que as mídias independentes tiveram nos anos de ditadura, elas estão presentes no cotidiano atual de forma que às vezes nem nos damos conta: a rádio comunitária, o jornal do bairro ou de uma instituição, uma cartilha ou panfleto que explicam direitos, uma luta, uma causa. A internet trouxe novas nuances: movimentos, associações e diversas outras representações da sociedade civil – institucionalmente organizadas ou não – passaram a criar e transmitir o próprio conteúdo de forma mais ampla a acessível: páginas em redes sociais digitais, podcasts, canais no YouTube ou TikTok, blogs. As plataformas se multiplicam, assim como as possibilidades e a criatividade dos produtores de mídias independentes.

No jornalismo, de forma específica, este padrão também pode ser observado: notícias e reportagens (muitas de altíssima qualidade, outras nem tanto!) sendo produzidas na perspectiva de trazer um conteúdo diferente daquele apresentado nos grandes jornais. Tudo isso, na imensa maioria dos casos, com pouquíssimos recursos e infraestrutura. O artigo do Le Monde – “Mídias independentes precárias, mas populares” –, publicado recentemente e traduzido por nós aqui abaixo, nos faz pensar exatamente sobre a questão dos recursos: mostra como as mídias independentes francesas estão passando pela pandemia, muitas fortalecidas, a partir de possibilidades como o trabalho conjunto e de recursos dos leitores e empresários que acreditam nas ideias e ideais das mensagens trazidas por essas mídias. Ao ler este artigo, nos resta imaginar o que seria das mídias independentes brasileiras se a nossa realidade fosse mais parecida com a francesa. Ou seja, com a sociedade mais consciente da importância da imprensa alternativa. Afinal, como um dos entrevistados afirma no artigo, “mídia independente não significa mídia pobre”. Ou, no caso brasileiro, não deveria significar.

Marialina Antolini é jornalista, pesquisadora do Observatório da Mídia, autora da dissertação A comunicação dos movimentos sociais como meio de empoderamento para a cidadania, defendida no PósCom-Ufes, e doutoranda na Michigan State University, nos Estados Unidos.

A imagem de abertura é do cartunista Vinolihttps://chargesdovinoli.wordpress.com/

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Le Monde, 26 de janeiro de 2022, p. 19

Mídias independentes precárias, mas populares*

 

Militantes do pluralismo da informação, essas redações, muitas vezes posicionadas à esquerda, vivem, em sua maioria, em permanente fragilidade financeira. Em caso de maiores dificuldades, algumas podem contar com a generosidade de seu público.

 

Ao longo dos últimos meses de 2021, permaneceu o suspense sobre a sobrevivência de várias mídias independentes. Para manterem a tarefa de continuar informando, todas apelaram à generosidade e à fidelidade dos leitores e apoiantes. Obviamente, as constantes contagens regressivas não foram em vão: os resultados geralmente superaram as expectativas. A publicação online dedicada à cobertura local Médiacités parou seu contador em 2.195 novos seguidores, enquanto o semanário de notícias políticas e sociais Politis viu o número de assinantes aumentar em 12% (ao menos 10 mil a mais) e recebeu 660 mil euros em doações. Cinco mil novos assinantes pagos (para um total de 20.600) se juntaram à Blast, a web TV investigativa dirigida por Denis Robert. Seus apoiadores desembolsaram 380 mil euros em dois meses. A “publicação investigativa e de cultura urbana” StreetPress, pioneira na denúncia da violência policial, recebeu 74.261 euros em doações, enquanto esperava 70 mil. O site de atualidades sociais Le Média, lançado em 2018, esperava arrecadar 100 mil euros e conseguiu 113 mil.

“Tais sucessos são um sinal de que as pessoas querem mídias independentes que contribuam para o debate público”, comemora Agnès Rousseaux, coordenadora, há dez anos, da publicação online dedicada a notícias ambientalistas e sociais Basta! (com cerca de 300 mil euros em doações anuais) e diretora da Politis desde maio de 2020. São duas redações que variam com dez e 25 profissionais, respectivamente.

Nas mensagens de encorajamento que acompanham as doações – parcialmente dedutíveis nos impostos – os defensores da diversidade na imprensa manifestam, muitas vezes, a preocupação com a “estagnação” dos meios de comunicação. Em um estudo qualitativo realizado em dezembro de 2021 pelo Médiacités, os leitores afirmaram tanto o desejo por coberturas inéditas quanto por linhas de reflexão, soluções ou iniciativas bem-sucedidas. “Estamos todos ameaçados pela infobesidade: uma avalanche de informações (na maioria ruins), mas com pouco poder de ação. Superinformados, mas pouco ativos”, lamenta um assinante.

PUBLICIDADE, PODCASTS, VÍDEOS

Assinar uma oferta editorial diferente das mídias tradicionais é, portanto, uma forma de ativismo muito gratificante, no qual os doadores podem ver sua utilidade a cada conexão ou publicação.

Não faltam opções. No final de outubro de 2021, o Fundo por uma Imprensa Livre (FPL), uma entidade lançada há um ano e meio por iniciativa da Mediapart para ajudar projetos a iniciarem ou se recuperarem (com 163 mil euros angariados em dezembro de 2021), lançou a chamada pelo “apoio à imprensa independente”. Foi um pedido para 45 sites e jornais, mas que foram rapidamente acompanhados por outros 48. “Noventa e três signatários, e isso é apenas a ponta do iceberg”, diz Charlotte Clavreul, diretora-geral do FPL.

Poucos desses projetos se dizem abertamente “de esquerda”, preferindo se definir como antiliberais, feministas, ambientalistas, antirracistas ou contra as desigualdades e injustiças sociais. “O termo ‘de esquerda’ foi tão depreciado no mandato de François Hollande que evitamos usá-lo. Isso gera muitos mal-entendidos, principalmente com as classes mais populares”, reconhece Aude Lancelin, fundadora da QG, le média libre, que ela apresenta na Internet como o “lugar de reconquista de uma palavra livre da tutela do mercado e do poder político”. Uma espécie de sutileza que faz Charlotte Clavreul sorrir: “O FPL é apolítico. No entanto, até o momento, não recebemos nenhum pedido de qualquer mídia independente de direita”.

Eu nos chamo de “mídia mendigante”, diz sorrindo JeanBaptiste Rivoire, ex-funcionário do Canal+ e fundador do novíssimo site de vídeo documentário Off Investigation, no qual 3.400 doadores contribuíram com 250 mil euros no final de 2021 (o primeiro documentário, dedicado ao secretário-geral da Presidência, Alexis Kohler, acumulou quase 1,5 milhão de visualizações no YouTube desde que foi postado no início de novembro). Uma definição genérica tingida de autozombaria, que nem todos necessariamente assumiriam, assim como seus modelos econômicos, já que incluem nuances relacionadas a valores. Assim, por exemplo, se as ONGs investigativas Disclose ou Splann! usam de financiamento participativo para pagarem suas apurações, é para oferecê-las com acesso livre, pois “a informação é um bem público”.

Outros têm como questão de honra existirem apenas pela qualidade de seus trabalhos, única forma, acreditam, de gerar apoio e assinaturas pagas. “Eu fico muito aborrecido com todos esses meios de comunicação que se entopem com crowdfunding”, admite ainda Aude Lancelin, fervorosa defensora da assinatura (sem, no entanto, revelar seus números). “Isso cria uma ideia de que os leitores devem financiá-los por ativismo, ou por pena”. Outros, por fim, diversificam seus recursos por meio de publicidade, produção de podcasts ou vídeos para terceiros ou de capacitação em alfabetização midiática. Quando não abrem chamada para novos acionistas.

“A sustentabilidade econômica é uma questão básica sobre a qual todas as mídias independentes tropeçam”, reconhece Jacques Trentesaux, cofundador da Médiacités. Este ex-integrante da L'Express está se preparando para lançar uma nova campanha de adesão para, depois de evitar a falência, aumentar de 6 mil para 8 mil o número de assinantes e alcançar o equilíbrio financeiro.

“Não são setores lucrativos, todo mundo se contenta com economias um pouco precárias”, acrescenta Johan Weisz Myara, fundador da StreetPress, que afirma atingir entre 3 milhões e 6 milhões de pessoas por mês em seus canais no YouTube, Instagram, Facebook, TikTok, site e boletim informativo. Mesmo recebendo 190 mil euros em doações em dois anos, faltou pouco para que a pandemia de Covid-19 não acabasse com o site que ele criou em 2009, graças a um empréstimo ao consumidor de 5 mil euros. “Aqueles que estão dispostos a nos financiar podem ser contados nos dedos de uma mão, e alguns deles, têm má fama na imprensa”, declara, em alusão a Hervé Vinciguerra, fundador do fundo Héliée, que assumiu, no outono 2021, 9,9% do capital do site. Alguns meses antes, na primavera, o desejo desse generoso industrial, financiador da associação anticorrupção Anticor, de participar do lançamento do Blast havia causado uma tempestade: sua prática de otimização tributária, legal, mas não tão moral, não se afinava com a ética defendida pelos adeptos das mídias independentes... A operação não foi realizada. No entanto, a polémica não impediu que a web TV angariasse cerca de 1 milhão de euros.

“PEQUENO DÉFICIT ESTRUTURAL”

“Mídia independente não significa mídia pobre”, afirma Denis Robert, figura principal de uma equipe de cerca de 15 pessoas, incluindo sete jornalistas contratados. “Além disso, é assim mesmo, estamos em equilíbrio, o Blast é sustentável”. Não é suficiente, porém, lançar novos programas sem recorrer a novas chamadas de financiamentos especiais. Uma prática de demandas do público, pontuais e direcionadas, que também faz parte do modelo econômico do Le Média, o site autônomo lançado em 2018 por Sophia Chikirou, o psicanalista Gérard Miller e o produtor Henri Poulain. No meio do ano, foram angariados 113 mil euros para financiar o programa diário “La Matinale” – quando pediram ajuda no fim do ano, receberam mais 103 mil euros. “Temos um pequeno déficit estrutural [entre 30 mil e 50 mil euros mensais] que compensamos angariando em fundos regulares”, reconhece Théophile Kouamouo, o apresentador estrela do programa com 7.200 assinantes pagantes. “É uma economia muito frágil, mas não queremos nos limitar a uma espécie de ortodoxia orçamentária que atrofie a nossa oferta”.

“As pessoas não podem ler tudo nem assistir a tudo. Olha quantos são!”, defende o milionário Olivier Legrain, quando lhe é apontada a permanente instabilidade financeira dos meios de comunicação que ele já ajudou. “Não procuro saber como eles usam o dinheiro que dou, porque cada vez que perguntava, não tenho certeza se eu o teria usado da mesma forma”, declara, magnânimo, este aposentado da indústria, agora patrono da imprensa independente, entre eles Les Jours, Reporterre, La Déferlante etc.. O agora psicoterapeuta com mais de 70 anos, há muito tempo articula a ideia de reunir os títulos que gostaria em uma “Casa de Mídias Livres", em Paris, para que eles compartilhem certas despesas e imaginem, se necessário, projetos conjuntos ao redor de uma mesma máquina de café.

Após o fracasso, no início de 2019, da compra de um edifício no Boulevard de Charonne, estão em andamento negociações com a Prefeitura de Paris para a aquisição um edifício de 5.500 metros quadrados no Boulevard Barbès, onde poderia acomodar 350 postos de trabalho. Enquanto espera reunir sob o mesmo teto essas empresas de imprensa com bases frágeis (se é que realmente desejam coexistir...), algumas cooperações estão surgindo. Polite, Basta! e Radio Parleur foram morar juntos. A Blast exibiu o primeiro documentário de Off Investigation, que em breve poderá apresentar um programa do Reporterre. Mas, em um ecossistema onde o sucesso do Mediapart serve como símbolo, todos esperam, acima de tudo, ter sucesso. Pelo tempo que sua comunidade de leitores assim o queira.

Aude Dassonville

(*) Tradução de Edgard Rebouças/Observatório da Mídia

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Publicado em 25/02/2022, às 9h

 

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